ANTOLOGIA
TREM DAS
PALAVRAS
(2011)
Prefácio: JORGE HENRIQUE BASTOS
Capa: ANDRÉ COSTA
Diagramação do livro impresso: CAROLINA GODINHO RETONDO
Diagramacão digital: ALFREDO ROSSETTI
Página Web : alfredorossetti.com
Endereço Eletrónico : contato@alfredorossetti.com
EDITORA TAGARELA – Ribeirão Preto
Este livro é dedicado à memória de Apparício Lara Filho, amigo e mentor
Agradecimentos efusivos a Fatu Antunes e Mário Tadeu Ricci, amigos que possibilitaram este livro.
“Escrever é estar no extremo de si mesmo”
João Cabral de Melo Neto
Nesta Antologia estão contidos os poemas dos livros:
EM BUSCA DO VERSO (2005)
MUNDHOJE (2006)
O QUANTO DESÁGUA (2007)
ESSÊNCIAS DA NOITE (2008)
AMOROSOS (2009)
POEMAS 2009/2010
dispostos em cronologia inversa, verdadeiro trajeto deste trem,
que a Poesia, sombra galhofeira,
insiste em chamar de viagem pelas perdas e pelos danos.
PREFÁCIO
NO TREM DAS PALAVRAS Numa sucessão de ritmos, tons e experimentações estilísticas que revelam o equilíbrio poético, Alfredo Rossetti expõe neste TREM DAS PALAVRAS, toda sua capacidade criativa. O livro reúne poemas de várias épocas, demonstrando que o autor vem se dedicando a uma discreta pesquisa poética, como um estudioso que investiga sem alardes, sob a égide da imaginação lúdica. Alfredo Rossetti trabalha como o químico que experimenta fórmulas para atingir seu fim, a receita certa, a palavra sã. Explorando um variado leque de temas que vão da palavra amorosa à reflexão ideológica, até as inquirições ontológicas, como nesta passagem esclarecedora: (No sempre perco meu documento. A minha terra é esse momento) O poeta deve sempre procurar reproduzir o mundo, o tempo, as sensações de uma maneira que ilumine o leitor para fatos, à partida corriqueiros, mas que permitem reinventar as coisas perante as pessoas. No poema O MOVIMENTO DA ARANHA, Alfredo Rossetti condensa a imagem da solidão, num dos textos mais conseguidos do livro: O bar sem afagos. Sentados à mesa, os três. Um homem sem olhar, uma canção. e revolta, tácita, soberana dos dois, a solidão. Tal capacidade de capturar um momento e sintetizá-lo em palavras é uma das formas que temos para admirar um poeta, de criar um medidor interior capaz de mensurar a tensão que se reproduz em nós após a leitura de um verso: E a solidão obedece seu santificado de deserto O próprio poeta tem que se conscientizar do seu estar no mundo, dos seus limites e de sua pequenez: Me transformo, me moldo. Neste mundo de Deus me afiguro, me adpato. Nunca paro, e até o próximo segundo me reforço, estou apto. Alfredo Rossetti consegue atingir momento de real poeticidade, em que a sua condição reflexiva – inserto em todo verdadeiro poeta – produz passagens que poderiam ser os punti luminosi de sua poética: Somos uma eterna madrugada, quando falamos à sós. Momento em que buscamos a verdadeira estrada: a que nos leva para dentro de nós. A busca do sentido da vida é percebida através da compreensão metafísica. O poeta é aquele que indaga tudo o que envolver o homem, e daí tira sua parcela de beleza: O que foi antes passa a ainda é. Mas se o poeta tem plena consciência de seu estar no mundo, também está atento às mudanças ocorridas ao longo do tempo. É como este espectador lúcido que Alfredo Rossetti dá um salto processual indo da reflexão metafísica, para a reflexão ideológica, interrogando-se sobre as derrocadas das ideologias, os desencantos políticos. Neste sentido, o poeta mostra seu passaporte do homem interessado no destino humano: A foice foi-se. Virou ponto cego. Da foice à colhedeira ao martelo sem prego. A sua interrogação mescla desencanto com humor sem ser tendenciosa, pelo contrário, é enviesada pelo humor, seguindo uma tradição literária brasileira desde os modernistas: Enquanto o capitalismo enche o mundo de lixo e a incompetência comunista o homem de ilusão, a poesia me enche de preguiça sem qualquer pudor ou busca pela razão. Em TREM DAS PALAVRAS, Alfredo Rossetti inaugura uma linha poética que faz muitas paradas por diversos gêneros poéticos – poesia modernista, à maneira de Oswald de Andrade, poesia marginal, concreta, etc. – Mas a meu ver, é sobretudo na percepção do mundo que o poeta captura os fatos corriqueiros que se transformam em instâncias expressivas, e onde gravitam os momentos mais fortes do livro. O autor funda aí uma voz para si mesmo, instilando uma expressividade assinalável. Exemplo emblemático e característica primordial deste poema, lê-se no poema O VELHO G&E: O ventilador da biblioteca traça, em pêndulo eólico, um mapa invisível. Distribui seu aceno simbiótico entre livros. Emite um grito que o vento abafa, enquanto uma flanela encalmada acaricia sua aranha ferrenha. Gotas de um óleo balsâmico o revigora, mas abisma a poeira amiga, que o afaga nas noites sem sopro, de silêncio consorte. E assim, efígie do tempo, aguarda a sua condição humana, quando a manhã o torna poesia. Sua linguagem é sucinta, transparente, surpreendente. E todos devem receber com prazer o convite para essa viagem que o poeta nos convida, com o poder de sua linguagem poética. Jorge Henrique Bastos /////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////// POEMAS DE 2009/2010 A BUSCA busco um caminho não só caminho mais que ir defluir busco um papel não de papel antes carne lápis e cinzel busco o livre da liberdade da palavra que grito encrava busco o fim antes de fim meio vital soro centeio busco o poema que antes de poema sou eu IDENTIDADE sou de uma terra que não mudou de nome nem o telefone mudou minha cara nela uma terra de conceitos próprios, sem desvios móbil e contumaz feito rio a terra do homem que se ri porque se enrica se reza pela vida terra bonita de ver sentir, beber a força do campo e benfazer mas uma terra que ficou distante me fez errante e me interroga terra que roga pelo meu interregno o nunca estar no quando falado no que herdado a terra zomba sem saber do que me tempera e fixa sem o gracejo que me faz assim: meio barro e jardim terra que erra e me desterra ao vento e janela dúvida e quimera sem paz e guerra (no sempre perco meu documento a minha terra é este momento) O ESTRANHO dentro de mim um alguém me tira do sério um alguém-mistério me traz o oco um alguém-sufoco não me repele um alguém à flor da pele não me escuta um alguém-cicuta coro do instinto um alguém que sinto que não me zela e me cora dentro de mim como um alguém de fora O LIVRO DA NET ”os homens criam as ferramentas; as ferramentas recriam os homens” M. MCLUHAN ”Este mundo (pressinto) vai se tornar terrivelmente chato” DRUMMOND leio um livro adensado em kbites leio o livro que não se desarranja não fica sobre a mesa não fica sob a cama nem esparso contorno livro lá da terra que esbanja o não retorno livro sem marcador da marca do seu tempo livro sem coito filho do depois que a humanidade desapareceu numa nuvem espetacular em Maio de 68 RUÍDOS MUDOS sou o grande amor da solidão seu anel de grau seu rosário sua caixinha de música me reparte durante o dia ao sol, em qualquer horário resta-me a um canto silente povoa-me de bocas risonhas entoa cantigas não minhas encontro cativos de ladainhas afastamento e solidão olhos desprevinidos lassidão, ruídos mudos transidos e eis que o nada, príncipe destes tempos, surge MOTO PERPÉTUO ”meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho” João 5:17 me transformo, me moldo neste mundo de Deus me afiguro, me adapto nunca paro e até o próximo segundo me refaço: estou apto se a obra do Filho e Pai é incessante sou desta força o que replica: o tudo ou o nada mutante ontem à noite um espinho, hoje um inhame engrenei-me no universo um gene que aprende magnitude deste came não busco entendimento nem oro a contestação mas curioso (poeta) o que se evoluiu a ser meu coração O MOVIMENTO DA ARANHA O bar, sem afagos. Sentados à mesa, os três. Um homem sem olhar, uma canção, e revolta, tácita, soberana dos dois, a solidão. De homem a retrato. Acinético, ensaia respostas à dúvidas. Em vão. A canção, gitana, malquista, de notas decaídas, traça linhas entre paredes sem saídas. E a solidão obedece seu santificado de deserto, ao permitir da aranha a lentidão, posta como único cenário movente, quase desafio. Estanca vidas outroras inteiras num copo vazio. POEMA PARA O BADEN Em seis cordas, o Brasil triste de outono, deslinda-se cafuzo. No violão retinto, na adoção do pecado no grito de Vieira, emites o chamado noturno aos versos dos condores. Consolação da noite, evocas o silvo ábrego, em auriverdes tendões em tempos agora de convés, onde apuras meu sangue e contorces pequenas lágrimas vertentes aos teus pés. A MOÇA DO BANCO DO JARDIM Mais que a saia as mãos na testa como pérgula. no pulso dourado barbante raro. Nós e fitilhos.
E arte se completa no artefato. (Meu coração é que doura em sorriso. Salta em mim o outrora, convidado à revelia.) A saia ao sol enciúma a tarde. Passam Dois mil trezentos e setenta e dois olhos que olham, sinto. Olham como se fosse de Marte ALIMENTO Um pardal no meu jardim de cimento, biqueiro e visão que enternece. Ignora e dele a angústia eviterna pelo minuto de um sorriso que nada evoca. Quer um alimento e nada transparece em súplica ou bramir. Sem sombra de tédio, na irrequietude de um corpo são, e no do meu despertar efêmero, é tosco de jardim. Frio de cimento. Vem e fita grãos espalhados, ordenados pela natureza, que na maneira do pré-saber, oferta. Logo, ilusão, desvanece. E um abismo na tarde recolhe as sobras CAMINHO ”Poesia e política são demais para um só homem!” TERRA EM TRANSE – Glauber Rocha O poeta é o dono do seu pensamento e pensa repartir sua luz na palavra não palavra. A que, fina e repressora do que se entende à primeira vista, ao primeiro demão. A poesia, estado de viver se exteriorizando, tem o afã de apregoar o infinito. De resto, apenas uma vida que se borra. O MARCADOR DE LIVROS coloco em meio às páginas de Drummond Maiakóvski bem em cima do Áporo no encontro poeirento da entomologia desconforto que passa ao largo de estantes tediosas entre travessias angustiosas um olho que não se deixou-se matar amanhã ele (o olho) iluminará o caminho do meu olhar na volta infinita ao bosque da poesia TERRA Terra não é só chão onde esteiram nossas sombras. Não só punhado de terra areado sobre mortes. Terra não é só sonho alimentado por posse, distante de qualquer coisa que se imagine no fim do que não se enxerga. Terra não é pátria nem o amor por ela. Nem o berço celebrado ou história que se guarda Terra planeta girando no abismo é filha do nominalismo. Estas Terras não são a Terra. Terra é a impossibilidade do que pensa sobre a Terra. O que nunca será. O desejo da surpresa de onde atracar. O insabido, onde buscar. Terra é um infindável desterro dentro de nós. O GOSTO QUE SE DISCUTE O homem olha o Universo: sente-se pequeno. O homem ouve um pio na mata: sente-se pequeno. O homem sentado na praia: sente-se pequeno. O homem diante do tempo que contam os livros: sente-se pequeno. Mas o homem com as escolhas nas mãos: não pode sequer pensar-se pequeno. O VERSO ”Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras.” DRUMMOND plantas ao pé da tristeza indócil o desequilíbrio entre a face e a outra o indício jogas ao precipício flores do susto a vida remete ao que vem o surto a pele rasga no papel o coração processo – adaga e folia comoção um beijo de mote – um soluço léxico verso na noite pulsa e rebate lítico plantas mas não colho na hora vernal posto ser indelével – segunda vinda vergel faço da palavra pingos de chuva busca zelosa e infatigável da chave MOSCAS E RESMUNGOS quando menino olhos de radar olhar de redor olhos de não dormir quando menino espreita de ossos e sem que tivesse um telefone a tocar quando menino a espera sem sal música a bailar
sem passos de cem do tango universal quando menino moscas e resmungos muro de pedra escada trêmula esquina e fungo quando menino o que se era não era para ter antes (quem lembra quer sorrir quer festejos e nozes quando o depois tem algo como o rio que segue adiante quando menino a lesma pós chuva era a irmã o amor doía e chuva queria toda manhã quando menino muito cheiro de vida cheiros e rimas credos e bueiros quando menino pior que a morte o olhar penitente a face da cruz quando menino esmoía de frente com visão de goleiro as frestas de luz VÍCIO DAS CINZAS ”Como em turvas águas de enchente, Me sinto a meio submergido Entre destroços do presente.” MANUEL BANDEIRA Pontilho um sorriso de entardecer no filamento de uma lembrança que agoura a chamuscar o momento. Acontecimento que se debate. Ponte arcada soçobrando o tempo a estreitar arranjos impossíveis, a vasculhar sôfregas tentativas de renascimento, parcos consertos, bandagens no feito, tolos reparos. O que foi antes passa a ainda é: perfume de hoje, espinho fresco de ponta acerada, arraigada. Flama no segundo dorido, sem fim que se espera, acalora ou alivia posto ser tempo que não se divide. Brota em mim o desejo de cortina eterna a exaurir o vício das cinzas. A VELHA BANDEIRA Lá vai o cabelo desalinhado, gris e nazarita. Lá vai a camiseta sem manga. Lá vai o desafio andante assobiando Hey Jude. Lá vai nubívago, entre pernas e fones de ouvido. (Tudo na rua é colorido, menos ele, traço em nanquim) Lá vai e passa com o que passou. Lá vai um tempo embaraçando outro tempo. Lá vai o velho hippie agarrado a galhos de seu sonho. Lá vai, sem cair. DEVASTAÇÃO penso na região do Araguaia: lona de ringue sem beijo civilização maia impotência sobre o desejo rastros apagados veneno de tocaia ameaça terminal mastros quebrados livro do século XVIII com traça edênica querência abrasada amanhã pensarei sobre o nada HAICAIS o raio de luz dentro da noite flutua partilha da lua fugaz, viça e cai maneira da cerejeira ser flor samurai CASA DE ONTEM porta de entrada imagens do infinito soberba do tango passagens e grito vento pequeno – avencas quintal e a estante posto que pouco fica vago coração distante NOSSO AMOR queres que seja dor? então vem lenta e vem assim como quem tenta se puderes traz sal e pimenta a água deixe na lua – que fique benta se vieres anda como gato procissão folhagem sem unhas sem o suor de última viagem se queres sê a dor mas não a de ferir a dor raiz – a dor do só dor a dor do jeito que nem a dor gosta a dor que intervala (nem sempre disposta) a dor, se queres ser, a crua ao relento se queres cinza pinta a aparente dor da gente – a dor cavada mina de prata, escora, semente. ENCONTRO quero adormecer neste abraço quentar a vida neste toque revoar como pipa multicor segurar essa forma no espaço outro verso outro eclipse noutra dor invocar o sabor deste entrelaço e ungir o que virá no cumprir do arquétipo que adeja e ver o estilhaço desta placidez sertaneja desflorescer na volta a um tempo de cansaço POESIA ANÊMICA desenhados em giz apagados em giz fáceis em giz lá vem festejando o trem que nunca virá nunca será não sairá nem passará pela estação de quem espera de quem suspira de quem pode marcar se marcar se redimir através de um lirismo que se desbota a cada passo do que não se move lá vem festejando o projétil fosco cheio de gentilezas mas ignavo afebril versos de brancos dentes versos que se iludem não reativos vesgos palavras vulgocráticas desistentes do poder de seu mistério VINAGRE a foice e o martelo o que ficou: que se pensa no livro de história livro de estudar chato de ler morta memória uma quarta de cinzas um pobre samba meu onde está? escafedeu a foice e o martelo medrou assustou assustou-se empobreceu entrou pela goela ninguém fala mais libreto de ópera ou virou mortadela nem na net
nem no prelo a foice foi-se virou ponto cego da foice à colhedeira ao martelo sem prego quem sabe ainda volta logo depois do banho com roupa mais jovem e outro tamanho a foice e o martelo um sonho paralelo CONTO NUM POEMA Ná sétima cornija, num dia de garoa como todos os outros, encontraram-se na ladeira do Verso Manco, sobriamente vestidos, timidamente viventes, Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa. O Carlos, ao ver o outro possuído de Mestre Caiero, quis ser mineiramente gentil, dizendo logo um verso: ”sou um homem dissolvido na natureza, estou florescendo em todos os ipês” (1) Mas o português, com vontade de vicejar em outros mares ou riachos, de forma deseducada, foi embora num estremecer corpóreo. E apareceu o Fernando, que após sacudidelas, ajeitou os óculos e pouco solene, murmurou ao colega de grandeza: ” – Vou ao Abel!” (2) 1) Versos do poema Tempo de ipê, de Carlos Drummond de Andrade. 2) Frase dita por Fernando Pessoa, várias vezes ao dia, no escritório do Sr. Moitinho, onde trabalhava de tradutor comercial, quando saia para beber um trago de aguardente. A ONDA ”só as ondas se sucediam, em cada onda o mar se despindo sem nunca chegar a nudez” MIA COUTO Sou invadido por um tempo perdido. Onda mansa que atinge o fim da praia. Demora a voltar, querendo ficar. Traz consigo a incerteza da notícia dentro de uma garrafa. Molha-me. Esfria pretensos mergulhos. Nada grita, nada mostra; corrói. E a dor que porta, distribui de sorrisos nos lábios Quando a temo infinita, esvai-se. E com o rosto ao sol, respiro novamente na confluência do marasmo de hoje e um acorde beatle imorredouro. O VELHO G.E. O ventilador da biblioteca traça, em pêndulo eólico, um mapa invisível. Distribui seu aceno simbiótico entre livros. Emite um grito que o vento abafa, enquanto uma flanela encalmada acaricia sua aranha ferrenha. Gotas de um óleo balsâmico o revigora, mas abisma a poeira amiga, que o afaga nas noites sem sopro, de silêncio consorte. E assim, efígie do tempo, aguarda a sua condição humana, quando a manhã o torna poesia. A POESIA 1. A poesia traz água para quem não tem sede. A poesia alivia a dor que não se sente. A poesia verte água que se singra e o bálsamo que suscita. A poesia assoma o que está sob pedras do aflitivo dos dias. Atrás dos portais do efêmero, do raso. O sorriso alardeado na manhã nascente de tristeza, lágrimas escoadas em meio a festejos de amor, são outras sedes, outras dores, alteadas no momento em que a poesia cava a nossa alma. 2. A poesia acolhe-se à margem do aquém mundano, Sai em busca do não-comum além cigano. Sem garras (já se disse nas sombra), nem masmorras, súbita aparição do usual, antinatural, provém o homem de outros braços, outras rosas, novas pernas, laços, forjas, outro mundo que não se vê direto, claro, enquanto suporta a tralha que de vida escorre. Com versos revogados no peso dos dias, a poesia, díspar, manancial e arte, não trabalha nem morre. 3. Cordata, a palavra aloja-se tranquila, mas inócua. Assenta ao branco como um leito. Quieta, sem presságios. Corto-a ao meio, desalojo-a tangente. Ela renasce em calor e prova da missão lírica sem suspeição. E mesmo menor, ínfima de espessidão, prova do destino de gestar o poder de afago que o papel domado e silencioso jamais sonhara. 4. E o verso nasce, sopra. E contém aquilo que não se espera, não deixa que se vergue. Não permite a afronta e se cristaliza como águas das chuvas que caem, escorrem e são levadas, amor fati, sequentes, sábias no seu caminhar Não importa muito a fugacidade. O momento é viva, motor e arrimo. Brota, serve e adormece feliz. Dentro de cálices de estrelas, compartilha o espaço com a grandeza e a loucura, junto à toda poesia do mundo. 5. Versos, têm dois. O da hora marcada e o outro, fértil. que nos desencontra. Do verso que se espera é um só fingir de belo. Verso vaticinado, no patíbulo, amarelo. Mas os pais de nosso delírio, o inesperado, este que é turba, saltimbanco, em nossa alma joga dados. Verso que não se rende ao adivinhar da mente. Verso que sempre assalta, fustiga, que se sente. Improvável, inaudito, que dói mas alivia. Se não puder outro nome, que lhe chame poesia. LEVE FANTASIA ”Já que nesta gostosa vaidade Tanto enlevas a leve fantasia” CAMÕES – Os Lusíadas – Canto IV 99-2 Não se retira o medo do amor ao mito. E passam anos, séculos e se enaltece Sempre a busca do poder infinito Que o homem à bula envaidece; Salta sobre escrúpulos sem rito, Morde ouro, crava dentes, se esquece Do brilho da estrela que o governa E se morre, deseja a glória eterna. O homem é o mesmo do ruprestre. O mesmo cego da Idade Média. Mata o que respira, o silvestre; Coloca os seus muros na ideia Que ter é a essência de um mestre Da vida e da luta em alcateia. Nada foge de sua cerimônia, Nem a divina mata da Amazônia. Mesmo com o sessenta, flor sonhada, Nada restou em nada que se ame. Estamos na caverna, qual morada Do sempre, sem que a luz do céu derrame E nos traga a redenção esperada Ou que a irmã Virtude nos reclame. Mas sabemos: o tempo envelhece E a religião nada leve tece. Que também singra em busca de seus mares, Mas de forma estrana, nos ensina Que a pobreza de seus antigos pares, A boa nova que não mais fascina É o que permeia sempre nossos ares E arrecadar mais é o que determina Ao homem buscar valer sua sorte E enquanto vive, vive a eterna morte. Não se ouve o brado do velho louco Porque ele já não há neste destino. Tentar novos gritos é muito pouco Porque fomos forjados em desatino, E as nossas vozes neste timbre rouco Jamais terão a Graça do menino Que trouxe o amor, mas deixou dilema: Poder amá-lo sem ler seu poema. ////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////
////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////
//////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////
////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////