ESSÊNCIAS DA NOITE
”Mas esquecemos. O dia perdoa”
Carlos Drummond de Andrade
SINOS SILENCIOSOS
Porto no bolso a espera
na síntese do que emboca,
a cada dia que deslizo
dentro de seus mares.
Que rejeita os sinos
os fogos e o gozo
que morrem em véspera
do que me anunciei.
Tudo se posta tarde,
passado e côncavo
na saudade de mim
qiando nunca fui.
Um espelho torto,
dragão e fomentador
nem me reflete
nem me abjuga;
apenas mostra um rosto
que fustiga o que de mim
escorre e não deixa
nascer o que me conclui.
NOITE PASSIVA
A noite que não é negra
é noite sem entrega,
sem presságio de noite.
Noite sem refrega.
A noite que se nega
é a noite de meio termo,
sem tango, que desmaia.
Do que não é enfermo.
A noite que não se regenera
é noite que não se ouve,
silêncio que não se grita.
Grito de garganta fria.
A noite que anseia o dia
é a noite que escapa,
círios que se apagam.
Bola na caçapa.
A noite sem defeito
é noite com trégua.
Algo que não se mira,
noite do não feito,
noite sem escravo,
sem soluço, sem medo
Que se cala e não crava
Unhas no degredo.
Noite que termina,
que fisga espaços.
Nesga pantomima.
Noite aos pedaços.
CHORO NOTURNO
”Eis porque minha alma ainda é impura”
MÁRIO DE ANDRADE
Longe de ti.
Perto de ti não respiro.
Sofro pela inépcia da noite e teu pêndulo.
A que chamas amor – noite vem, noite não.
Pela lógica que é minha e que passas remota.
O não entendimento é quase gráfico,
subalterno a todos os argumentos.
A prisão ao cigarro não é nada free.
Bebo o prazer de ter dor e a fumaça.
VERSO DA NOITE II
Frívolo cantador de suores distantes,
desvendo o que refuga num poema arrepanhado.
Ante a flor de pétalas dissonantes, se cismo,
retiro do pulsar um abismo de estupor
da angústia ávida pelo fado.
Um salto em torno da vaga por mais alto
a paliçada da trajetória aflita,
cumpro e excluo da madrugada o calor
de que não sei se desdita e encaro
a dor do nada que dentro de mim se agita.
É quando um verso que não morre alteia
o que está imerso, e na cisão da falsa teia,
salta e à pena ensina: tudo isso que escorre
é o viver na noite finita, que me abrange
como um lago que socorre e ao se enfeixar
com o alvorecer, se jardina.
E como espectro de mera fita, declina.
ESTRELA INCÓGNITA
A insegurança irrompe-me em qualquer lugar,
em qualquer segundo.
Mas uma estrela de tutela indecifrável,
irradia o sim fecundo.
Uma espécie de aragem de sorriso aberto.
Mãos que ameigam e me trazem de volta ao mundo.
NOITE TRANFIGURADA
(Visitando Shoemberg)
Vários tons
de cores notas e ânimos
vão somem voam vêm sobressaem do limbo.
Então tecem
vários tons da noite.
Noites adentro de vozes
desarmoniosas
em perfeita harmonia de vários humores
pecam afligem sangria da paz
quiçá flores.
Vários to s de fixas regras
irão tornar o único desejo reflexos
apanhas
entregas negras de
vários tons que colhem do século tecidas curas.
Feridas puras.
Grito no pedestal do seco abissal.
Ciclo onidirecional.
Banza fúsil em ternuras.
NOITE ALUCINANTE
Potros ao vento,
signos e sonhos,
portos e caudas;
suores medonhos.
Sono de pedra.
Alma ruprestre.
Jaula na noite.
sem viga mestre.
Luar desbotado,
palavra não lida.
Boca fora do tom.
Data vencida.
Beijo estranho
na morte doída.
Alçapão que indica
sem saída.
Inferno, pária,
morsa e aluvião.
Deus inafetivo,
filho de Abrahão.
Amnésia e partida.
Lua de botequim.
Cheiro do riso:
o prazer do fim.
NOITE SEM FIM
cruzes em pé
espada flamejante na beira na costa
sono delirante
criança amendrontada
fixas ondas cortes rápidos – fixas ondas
viagem interior
vaga atormentada
tapas de cima de lado – do outro
cálice de ouro cheio de incenso
um coro
besouro (imagem cimentada)
cruzes em pé
espada flamejante no dia aziago
nunca terminante, nunca fica o nada
peça de couro vira chicote na plena noitada
vaga chicoteada
declive no quando confete e serpentina
mesmo saudade
mesmo sem retina
declive tesouro
descanso do cálice de tapado
de outro sopro que anima
cruzes em pé
espada e dardo
tarde e noite
chaga e fardo chega e sai
nunca que cai no quase soluço
madrugada se esvai
MALUCO REALEZA
Raul é tão eterno quanto seu nome ao contrário.
FÉDON
noite escura
noite clara
a morte procura
a sabedoria aclara
noite escura
noite clara
o plenilúnio perdura
o triste enluara
noite escura
noite clara
a espera pelo sol tortura
a eternidade ampara
noite escura
noite clara
o noûs abjura
o veneno da tara
A ESQUINA
Ao amigo Mario Pinheiro de Carvalho
A esquina era aquela;
sonho e esquisitice de risos sem futuro.
Era da cidade, mas a esquina era dela.
E nos possuía nas noites em que tentávamos o fardo de viver
descobrindo sustos, despavoridas inquietações,
que se agarravam na essência da fúria probabilista.
A esquina era bela.
Onde sentávamos com o cigarro sem fósforos,
esperando o fogo da juventude aclamar mais um dardo atingido.
A esquina era sequela
aos tempos e vidas incontáveis, de vidas de passagens,
passeios e tristes fracassos e buscas por tentar entender o pão do dia.
Mas a esquina não era ela.
Era a que abrigava conversas sentadas,
madrugadas de um espinho camaleão,
de jogos interiores de cada um que recusava o passo,
antes o estilhaço de se ancorar no insabido.
A esquina era viela.
E por mais espaço, era própria de um pequeno mundo
de pequenos mundos, esconderijos de todas as sensações
em que éramos das cavernas, das inquisições,
do encarte positivista dos pais,
da dormência obliterada de uma fálica nação
sempre a servir-nos uma espera fria,
que, mágica, transformava,
em momentos de esquiva, a esquina em cela.
No meio-fio, rutilantes entraves insinuavam ambições
do que era o próximo segundo,
do que nasceria no amanhã,
no que fiaria nas nossas mentes,
nos livros, nas repetidas conversas, nos filmes,
na canção gratificante de um tempo rico de canções,
maiores que o próprio tempo,
que não deixaram a esquina ser mazela.
A esquina era a cancela
para todos os lados do vir a ser
ou para o alto da escada sem degrau ou rampa
para o acesso de tantos sonhos que,
só ao voar, chegaríamos em tempo de triturá-los
e experimentar o sabor de tudo que a vida,
hábil e dadaísta, proveria a todos enquanto peça
da humanidade que respira como alvorada onde está o tudo:
no meio da esquina paralela.
Nisso, íamos nascendo.
Enquanto o barro secava-se não ao sol,
mas ao cio da lua,
a esquina era a costela.
NOITE DE NELSON FREIRE
O piano angelita oscila
entre tangível e eldorado.
A mais sensível gota
de existência nos olhos do artista.
Pálpebras que remetem avisos.
Ao íntimo desconhecido,
via mãos grávidas da entrega.
Ao maestro:
cada segundo deve repelir o estatismo de viver.
Orbitam as retinas em maio à emoção
compartilhada com centenas de outros olhos
que esteiam o ouvido da noite.
Noite de música vista, descortinada.
Noite de cena final na lua da Casa de areia,
Noite de condão, diluvial.
Noite de olhos. Fixos, marejados.
SOLIPSISTA
A porta aberta, cigarro aceso.
Dentro da noite de dentro do escuro,
ruídos túrbidos atiram pedras no pensamento.
Sem clarão de lua a penetrar no espaço
do homem que vira bicho se não dorme;
que vira lixo se não se domina.
Aguarda-se o que virá.
Sem saber se virá, sem perceber se remirá.
Quanto mais a noite adentra,
mais a impossibilidade,
adventícia e nêmesis cresce,
para nunca mais desgrudar.
NOCTÍVAGO
”Yo solo describo el mundo. Estoy solo.
La soledad es amiga de los roces del cuerpo.
VIRGÍLIO LÓPEZ LEMUS
Temo que seja dor o que escondo
do olhar no espelho.
Temo que seja desta dor o enlace
da melhor parte: a de escombros
da noite, o do momento ateu.
Longe dos engates que o tempo traz,
a luta por paz nos alija da mandrágora,
que origina a delícia.
Frutificamos pelejas à espera da chuva,
a nos abrandar enquanto debaixo da terra.