MUNDHOJE 2006
mundhoje
1.
a vida arrastada pela correnteza dessa era semovente. – sem um sibilo
a confirmar: os trilhos de ferro nunca mais se encontrarão para amar
2.
o mortal primata
toma o mato
extirpa o curupira
mata a mata
fazdeconta que respira
e expira
na sucata
3.
o mundo velho de guerra
acorda/dorme em guerra
o mundo do reclame:
um mitômano vexame
o novo mundo bytexpandido
cheio de bandidos
sobrou o onde
esteja o onde
onde o onde
se esconde
4.
o fuga-dor é ator
no mundhoje alterna dor
mais que fingidor gera dor
o monitor gera o fuga-dor
5.
só se fala uma fala
a fala mesma
a fala leite
a fala jeans
a fala TreVa trava a fala
a vanifala
afala as bocas
6.
o fast afasta a pausa
o fast afasta o pouso
o fast afasta o gosto
o fast afasta o aposto
7.
SOCIEDADE
SACIEDADE
11.03.2006
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ruidosos
moto passa por meus ouvidos
porta de entrada
à baila da emoção indesejada
a não calmaria desavisa que nada
mais é antes
nas ruas em que rodas triunfantes
freiam a vida – que enfeia
o olho de vidro do ruído ateu
ata meu sonho pigmeu
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casmurros
eu poemo
tu poemas
ele poema
nós poemamos
vós poemais
mas
eles desveneram neologismos
10.04.2005
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godot
para o Henrique França, em saudável contenda
não faço
não vou
no espaço
sou
palhaço
de deus
esperandoestou
9.2.2005
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quixote
o sonho
pó
a vida
mó
27.10.84
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hora perdida
passo pela hora igual – não consigo desfiar a canalhice
da velhice da corrupção na minha poesia inimiga
que importa ao cidadão votado
senão que a consciência lhe diga
de manhã à noite
que ética é nunca ser derrotado
essa condição de que nunca há fadiga
nutrida pela pele do lobo pluridentado
protegido pela lei abissal do código superado
que nos enfronha nas mente como intriga
me torna fraco o acordo mutual
permito que essa ambição vocacional siga
enquanto entrelaçada numa rede nacional
minha cidadania me castiga
(mas será que não tenho nada melhor a fazer
do que versos sobre esse imperecível ritual?)
este Brasil é uma porta que me fecha
me desliga
02.02.2006
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jesus cristo
do orto
ao horto
a porta da luz
o preter-natural porto
sem cruz
23.03.2005
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receita
recicle seu passado
faça dele
papel higiênico
9.12.2003
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renovoo
após
o pós
o neo
urde
o retrós
02.07.2005
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passos viscosos
resíduos morais
calcorreiam olhos de ratos
no chão de relvas desalentadas
chão de raízes chorosas
frutos pútridos de urnas inconscias
bocas desdentadas
manhãs que se sonhara radiantes alvoram castradas
o sorriso que gela
o coração em ardência
(instante que a dor sela)
ferida aberta que a notícia traz
repisar no que envergonha
vislumbrar somente vasa
excremento ou peçonha
estigma que consome
o viver sem lustre
vontade inexcedível
de não se querer sequer um nome
18.7.2005
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TREM DAS PALAVRAS
. Dedicado à memória de Apparício Lara Filho, amigo e mentor.
. Capa de André Costa
. Prefácio de Jorge Henrique Costa
. Diagramação de Carolina Godinho Retondo
. Agradecimentos efusivos a Fatu Antunes e Mário Tadeu Ricci, amigos que possibilitaram este livro.
Nesta antologia estão contidos poemas dos livros:
Mundhoje, 2005
Amororos, 2007
O quanto deságua
e
Essências da noite, 2008
e outros poemas de 2009 e 2010,
dispostos em cronologia inversa,
verdadeiro trajeto deste trem, que a Poesia,
sombra galhofeira, insiste em chamar
de viagem pelas perdas e pelos danos.
A.R.
PREFÁCIO
Numa sucessão de ritmos, tons e experimentações estilísticas que revelam o equilíbrio poético, Alfredo Rossetti expõe neste TREM DAS PALAVRAS, toda sua capacidade criativa.
O livro reúne poemas de várias épocas, demonstrando que o autor vem se dedicando a uma discreta pesquisa poética, como um estudioso que investiga sem alardes, sob a égide da imaginação lúdica. Alfredo Rossetti trabalha como o químico que experimenta fórmulas para atingir seu fim, a receita certa, a palavra sã. Explorando um variado leque de temas que vão da palavra amorosa à reflexão ideológica, até as inquirições ontológicas, como nesta passagem esclarecedora:
(No sempre perco meu documento. A minha terra é esse momento) O poeta deve sempre procurar reproduzir o mundo, o tempo, as sensações de uma maneira que ilumine o leitor para fatos, à partida corriqueiros, mas que permitem reinventar as coisas perante as pessoas. No poema O MOVIMENTO DA ARANHA, Alfredo Rossetti condensa a imagem da solidão, num dos textos mais conseguidos do livro:
O bar sem afagos. Sentados à mesa, os três. Um homem sem olhar, uma canção. e revolta, tácita, soberana dos dois, a solidão. Tal capacidade de capturar um momento e sintetizá-lo em palavras é uma das formas que temos para admirar um poeta, de criar um medidor interior capaz de mensurar a tensão que se reproduz em nós após a leitura de um verso:
E a solidão obedece seu santificado de deserto O próprio poeta tem que se conscientizar do seu estar no mundo, dos seus limites e de sua pequenez:
Me transformo, me moldo. Neste mundo de Deus me afiguro, me adpato. Nunca paro, e até o próximo segundo me reforço, estou apto. Alfredo Rossetti consegue atingir momento de real poeticidade, em que a sua condição reflexiva – inserto em todo verdadeiro poeta – produz passagens que poderiam ser os punti luminosi de sua poética:
Somos uma eterna madrugada, quando falamos à sós. Momento em que buscamos a verdadeira estrada: a que nos leva para dentro de nós. A busca do sentido da vida é percebida através da compreensão metafísica. O poeta é aquele que indaga tudo o que envolver o homem, e daí tira sua parcela de beleza:
O que foi antes passa a ainda é. Mas se o poeta tem plena consciência de seu estar no mundo, também está atento às mudanças ocorridas ao longo do tempo. É como este espectador lúcido que Alfredo Rossetti dá um salto processual indo da reflexão metafísica, para a reflexão ideológica, interrogando-se sobre as derrocadas das ideologias, os desencantos políticos. Neste sentido, o poeta mostra seu passaporte do homem interessado no destino humano:
A foice foi-se. Virou ponto cego. Da foice à colhedeira ao martelo sem prego. A sua interrogação mescla desencanto com humor sem ser tendenciosa, pelo contrário, é enviesada pelo humor, seguindo uma tradição literária brasileira desde os modernistas:
Enquanto o capitalismo enche o mundo de lixo e a incompetência comunista o homem de ilusão, a poesia me enche de preguiça sem qualquer pudor ou busca pela razão. Em TREM DAS PALAVRAS, Alfredo Rossetti inaugura uma linha poética que faz muitas paradas por diversos gêneros poéticos – poesia modernista, à maneira de Oswald de Andrade, poesia marginal, concreta, etc. – Mas a meu ver, é sobretudo na percepção do mundo que o poeta captura os fatos corriqueiros que se transformam em instâncias expressivas, e onde gravitam os momentos mais fortes do livro. O autor funda aí uma voz para si mesmo, instilando uma expressividade assinalável. Exemplo emblemático e característica primordial deste poema, lê-se no poema O VELHO G&E:
O ventilador da biblioteca traça, em pêndulo eólico, um mapa invisível. Distribui seu aceno simbiótico entre livros. Emite um grito que o vento abafa, enquanto uma flanela encalmada acaricia sua aranha ferrenha. Gotas de um óleo balsâmico o revigora, mas abisma a poeira amiga, que o afaga nas noites sem sopro, de silêncio consorte. E assim, efígie do tempo, aguarda a sua condição humana, quando a manhã o torna poesia. Sua linguagem é sucinta, transparente, surpreendente.
E todos devem receber com prazer o convite para essa viagem que o poeta nos convida, com o poder de sua linguagem poética.
Jorge Henrique Bastos
POEMAS 2009/2010
Dentro de mim um alguém me tira do sério. Um alguém-mistério me traz o oco. Um alguém-sufoco não me repele. Um alguém à flor da pele não me escuta. Um alguém-cicuta, coro do instinto. Um alguém que sinto que não me zela e cora. Dentro de mim, como um alguém de fora.
O LIVRO DA NET
Livro que se usa sem coito. Um livro filho do depois que a humanidade desapareceu, numa nuvem espetacular, em maio de 68.
O MARCADOR DE LIVROS
Desconforto que passa ao largo das estantes tediosas.
Entre versos de travessias angustiantes, o olho.
O olho que não deixou-se matar.
Amanhã ele (o olho) iluminará meu caminho de volta ao infinito bosque da poesia.